quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O fusca

Inácio não se calou diante do seu pequeno-grande problema: o fusca.
Estava solto demais, ignoto ao seu eu-profundo, para perder seu tempo com veículo tão velho. Sempre pela manhã,  sonhava com o carro do infrator ao lado, por aonde quer que o fosse, havia algo a ser invejado: semáfaro, vaga no estacionamento etc.
Almejava mais quando olhava pro novo disco de Noel Rosa que ganhara de Noêmia. Empoeirado, à deriva, o disco o olhava com rispidez, ele sem reação, chocado, almejava os carros alheios a si.
Sempre aos sábados levava o rubro fosco fusca à lavagem e polição. Estava certo de que aquele seria o seu triste e inacabável fim: dirigir um fusca na capital do Ceará.
Fortaleza era, sem dúvidas o inferno-paraíso parra Inácio; inferno por conta do trânsito com seu íngreme carro, e paraíso porque tinha sua dona, Noêmia. Com seus cachos volumosos e sedosos: era o seu grande refúgio, a vida ao lado de Noêmia com seu velho cachorro Tupã. Formara enfim, depois de tanto tempo e sofrimento com mazelas amorosas e questões financeiras... Achava enfim, que a felicidade o pertencia: sabia ele que, mesmo com tantas reclamações e reclinações, sua vida fora quase alcançada pelo rubro fusca. Sua vida teria enfim sentido ao lado de Noêmia e Tupã., o velho cachorro manchado pelo tempo.
Às vezes sentia raiva, nos dias ensolarados de domingo, quando Noêmia insistia em ir à praia, somente por conta de um impecílio, o tirava do sério: o fusca. Além do mais, tinha Tupã à fazer-lhe companhia nas quentes e densas areias da praia, enquanto Noêmia bronzeava, Inácio entornava  a sua cerveja sagrada.
Não sabera ele, meu Deus,  que seu único, trágico e grande motivo para intercalar a sua felicidade com Noêmia e Tupã, entre flores e beijos, era o fusca.
Fusca que depois de tanta companhia à Inácio resolvera fundir o motor na avenida principal rodovia que liga Fortaleza à uma pequena cidade que me falha a memória agora: enfim, havia um destroço de fusca e uma ex-vida quase perfeita.
Um velho cachorro e uma curiosa dama de olhos chorosos esperam por um novo dono de família no orfanato mais próximo de sua casa. Enquanto isso, a saudade existe sem fim

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